Descobrindo o valor da erva-mate
Entre inúmeras possibilidades, o café se destaca como a bebida nacional. De longe a mais famosa, mais bebida, empresta seu nome para momentos importantes do nosso dia-a-dia: como ficar sem café-da-manhã? Que outro nome teria o gesto amistoso de acolher alguém na sua casa para uma conversa, além de “tomar um cafezinho”? O café corre nas veias do brasileiro.
A hegemonia do café pode acabar nos cegando um pouco para outros tesouros nacionais, deixando-os esquecidos no nosso inconsciente coletivo. Com o crescimento da cultura gastronômica no país, novas opções têm surgido, tradições antigas têm reaparecido e se destacado. Uma importante ampliação de horizontes está acontecendo nas cafeterias e restaurantes, com ela, estamos aprendendo que há espaço nos nossos corações para o famoso café e suas novidades, bem como para outras possibilidades e sabores. Um deles é o chá.
O chá não é um tipo de bebida que recebe muita atenção no dia-a-dia do brasileiro. O momento propício para surgimento de novos caminhos tem feito surgir mais opções, mas muitas cafeterias ainda negligenciam a bebida: se ele encontra um lugar no menu, continua sendo feito com saquinhos industrializados que podem ser comprados em mercados.
Para nos atentarmos para todas as possibilidades da erva-mate, o PDG Brasil foi conversar com alguns especialistas no tema. Siga lendo para saber mais sobre a bebida.
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Nossa relação com o chá
Como acontece com os outros chás, para os brasileiros, chá é muito ligado à saudabilidade. “O chá é muito associado à doença no Brasil. Por exemplo, você sai com uma pessoa e diz: ‘vamos tomar um cafezinho?’ ‘Vamos!’. Se você diz no mesmo tom: ‘vamos tomar um chazinho?’. A resposta é: ‘por quê? Eu não estou doente!”, brinca Carla Saueressig, sommelier de chá.
“Tomamos o chá quando estamos com porre, dor de barriga, ou seja, doentes. O café está associado a prazer e o chá a desprazer”, diz.
Carla Saueressig fica um pouco indignada com essa associação. Gaúcha que trabalha com chás há mais de 25 anos, é professora da associação brasileira de sommeliers e precursora dos sommeliers de chá no Brasil. Há muitos anos, desenvolve um trabalho que visa incluir o chá como bebida no paladar brasileiro. Isso a levou a abrir a primeira loja especializada na bebida no país.
A profissional dos chás, que é favorável ao uso do termo “chá” também para infusão, continua: “Queria que as pessoas tomassem chá não só quando têm dor de barriga ou querem emagrecer, mas por prazer. Harmonizando com a comida, no final de uma refeição ou no início, no meio da tarde como o café. Quero que os dois sejam aliados”.
A erva-mate
Entre os chás e infusões, a erva-mate em todas as suas formas de consumo é a primeira que surge no imaginário coletivo quando buscamos algo para representar o Brasil. Ilex domestica, Ilex mate, Ilex sorbilis, Ilex vestita, Ilex mattogrossensis, Ilex theaezans. Ilex paraguariensis são algumas das denominações que a árvore responsável pela erva recebe. A planta nativa da Mata Atlântica cresce na região do sul do Brasil e no norte da Argentina, do Paraguai e do Uruguai.
Assim como muitos dos costumes da região sul, o chimarrão, um dos produtos feitos a partir da erva, tem suas origens em hábitos mais antigos do que a história da América; foram os indígenas da região que identificaram pela primeira vez o potencial da planta
“Povos indígenas sul-americanos. Guaranis, Kaingangs, Xoklengs, Quéchuas, Charruas, Minuanos faziam uso da bebida tônica, que trazia vigor para o corpo e alimentava a alma”, explica Ariana Maia. A carioca é formada em Geografia pela UERJ, empresária, já foi Secretária de Turismo, Desporto e Lazer do município de Ilópolis/RS, cidade onde fundou em 2016 a Inovamate, que busca aliar pesquisa sobre a erva-mate e novos produtos.
Ariana é também membro do Conselho Fiscal do Ibramate – Instituto Brasileiro da Erva-Mate, coordenadora da Turismate Digital – primeira feira virtual da Erva-Mate e co-fundadora da Caravana da Erva-Mate, uma experiência para turistas e estudiosos.
É impossível falar de uma história completa da erva-mate, já que a escrita chegaria ao Brasil apenas por meio da colonização. Os registros arqueológicos, porém, comprovam que o consumo da planta tem mais de 5.000 anos, tempo comparável com o da própria Camellia sinensis.
O consumo
A passagem do hábito de consumo da planta dos indígenas começa por meio dos mestiços da região, depois sendo difundido nas cidades e chegando aos colonizadores. Ariana comenta que: “Em 1554, os colonizadores comandados pelo general Irala são apresentados ao Matí (mate), palavra quechua que significa cabaça, recipiente, e que passou a se referir como conjunto entre cuia, erva-mate, bomba e água. Por esse registro acredita-se que a maior parte do consumo era feito na forma de infusão”.
A melhora de disposição e aumento de vitalidade que o Matí trazia foram pontos de atração. Além disso, a bebida ameniza os sintomas da gota, doença comum na alta sociedade da época. Essas propriedades e outras atribuídas à erva-mate aumentaram o seu consumo, dando a ela valor mercadológico. Do ponto de vista econômico, a planta teve muita relevância no desenvolvimento da região sul.
“A produção de erva-mate foi responsável por auxiliar economicamente na emancipação do Estado do Paraná, no ano de 1853. Esteve no epicentro da Guerra do Contestado que definiu as fronteiras dos Estados do Paraná e Santa Catarina e foi responsável pela formação do Estado do Rio Grande do Sul. A erva-mate foi também fundamental para a manutenção dos Farrapos durante a Revolução Farroupilha como moeda de troca por armas, remédios, ferro e pólvora com o Uruguai e a Argentina”, explica Ariana.
Porém, por muito tempo o uso dessa planta ficou limitada à região sul do Brasil, na forma de chimarrão. Ariana conta que o mate passou a ser o chimarrão por conta da presença luso-brasileira na região dos pampas, área de domínio dos espanhóis, que tinham o costume de chamar de cimarrón os animais selvagens soltos pela planície.
“Devido ao seu sabor peculiar, a maneira como era apresentado pelo e tomado em grande maioria por indígenas e mestiços, a bebida recebe alcunha de chimarrão fazendo referência ao ‘selvagem’, do espanhol, e esse nome acaba se tornando comum entre os luso-brasileiros, sendo a bebida tônica chamada assim desde então”, diz a pesquisadora.
Após séculos de consumo restrito da erva, entra um grande personagem na história das infusões no Brasil. A família Leão, após adquirir um engenho ervateiro em Curitiba, introduz ao mercado uma alternativa para competir com o chá preto inglês: o mate tostado.
As refresqueiras inventadas pela empresa para servir o mate tostado com açúcar e limão fizeram sucesso no Maracanã na década de 50. Após a final entre Brasil e Paraguai, o refresco foi parar nas praias e até hoje é associado às areias do Rio de Janeiro.
O presente e o futuro
A erva-mate chegou à casa do brasileiro no formato de chimarrão, refresco e tostado à moda inglesa. Junto de outras infusões, continua sendo um personagem secundário do nosso dia-a-dia. Como muito bem observado por Carla, o chá ainda é um símbolo de desconforto e moléstia.
Mas a entrevistada vê o mate de outra maneira. “A erva-mate é uma erva completa como a Camellia sinensis. Uma bebida saudável e gostosa que começou a conquistar o mundo”, diz.
Carla há anos se dedica a criar espaços e maneiras de uso criativo da erva-mate e a disseminar seu consumo. “Temos todo um trabalho de promover ela e explorar processos diferentes para ela se tornar uma planta cada vez mais importante. Aqui no Brasil, quando se fala em erva-mate, pensam em chimarrão ou chá-mate, mas podemos trabalhar com ela de muitas maneiras: blends, usar como tempero, harmonizador de comida, até como comida.”
Nossa entrevistada diz que foi um prazer ver como cozinheiros e sommeliers de vinho e cerveja se surpreendiam ao serem apresentados a novos usos das folhas. Usos que vão além do esperado chimarrão. Com seu trabalho, Carla conseguiu ver a erva-mate ser introduzida em restaurantes como harmonizador e como tempero também.
“Pode-se fazer um trabalho de análise sensorial muito profundo com a erva-mate, de orientação geográfica e terroir enorme. Como temos muitos estados com diferenças de mais de 1000 km, variações de altitude grandes, clima, vamos ter indicações geográficas e de solo diferentes. A erva-mate no Brasil tem muito para crescer.”
O Brasil tem um território vasto de possibilidades quase infinitas. É um país conhecido pela sua biodiversidade e cujos produtos naturais e frutos estão cada vez mais conhecidos no exterior. O açaí, a mandioca e a erva-mate já fazem sucesso nos Estados Unidos e na Europa. Devemos esperar que estrangeiros reconheçam o valor de nossos produtos para finalmente podermos valorizá-los? A vanguarda da exploração de nossos frutos deve começar aqui, agora. Nada nos falta: produtos e criatividade nos sobram.
Ariana concorda. “Uma bebida natural, saudável, com bases históricas, feita por meio das folhas de uma árvore da nossa biodiversidade, com mais de 200 compostos fitoquímicos, considerada um alimento com potencial funcional”, diz.
“Vejo a erva-mate com um futuro promissor, sendo mais conhecida e usada no Brasil e em países fora do continente sul-americano, usada não apenas como bebida, mas também na culinária, em cosméticos, ajudando o corpo e a mente dentro do mais puro prazer.”
A cafeteria Yerba, em São Paulo, é um exemplo de casa que se dedica à bebida. Dos mesmos proprietários da cafeteria Por um Punhado de Dólares, oferece de forma fixa a erva-mate nas versões quente ou gelada, fazendo uma seleção rigorosa da erva e respeitando a qualidade, da mesma forma que costumamos ter com o café especial.
Vimos acima o quanto a erva-mate pode ser interessante para compor os cardápios das nossas cafeterias e restaurantes. Além de ser um produto saudável, é extremamente versátil e faz parte da biodiversidade brasileira.
Ariana nos trouxe um trecho do livro “A Fronteira”, do padre espanhol José Guevara (1720 – 1806), que mostra todo o valor do mate. “Se está cansado, logo mate para descansar; se suado, logo mate para refrescar; se sedento, logo mate para matar a sede; se sonolento, logo mate para tirar o sono; se com cabeça carregada, logo mate para aliviá-la; se com estômago decomposto, logo mate que o componha. Sempre há motivo para o uso do mate, que entenderam os índios nos princípios, os benefícios da dita erva.”
Créditos: Mila B (mate no chimarrão/destaque); Antonio Werner (close na erva no chimarrão); Ryan Ancill (chaleira e chimarrão); Karol Majewski (erva no pacote); Sche Team (bebida de mate em lata); Divulgação Carla Saueressig (Carla na plantação de erva mate, Carla servindo café gelado); Divulgação Yerba Café.
PDG Brasil
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