Entendendo o comércio direto de cafés especiais na África oriental
As relações de compra e venda de café são passos cruciais na cadeia de abastecimento global e o modelo de comércio direto de cafés especiais vem ganhando cada vez mais espaço nos contatos entre produtores e compradores.
Nesse modelo, produtores negociam diretamente com compradores sem a necessidade de intermediários. No entanto, essas negociações podem infelizmente ser difíceis para os produtores, assim como o acesso a elas.
Para saber mais, conversei com três especialistas africanos para entender melhor o comércio direto de cafés na África Oriental e por que o crescimento desta modalidade de negócios lá mais lento aqui do que em outras grandes regiões produtoras ao redor do mundo. Continue a ler para saber mais.
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Como o café é negociado na África Oriental?
O comércio de café na África Oriental é amplo e complexo, com modelos geralmente variando de país para país. No entanto, o comércio direto de cafés especiais é muito menos comum do que outros sistemas.
Mette-Marie Hansen é diretora administrativa da Kenyacof (Sucafina Quênia). Ela diz que o comércio direto é em grande parte um conceito auto explicativo: refere-se ao comércio direto de café entre compradores em mercados consumidores de café (torradores) e produtores, sem fatores intervenientes ou intermediários.
No entanto, o uso de intermediários é de longe a abordagem mais comum na África Oriental. Embora esse modelo enfrente críticas, Mette-Marie explica que esses intermediários muitas vezes agregam valor e experiência ao processo comercial.
Segundo ela, “os intermediários supervisionam o financiamento dos produtores ao longo do ciclo da cultura, oferecem aconselhamento agronômico com base em observações e medições, além de cuidar de todos os preparativos de exportação, embalagem, controle de qualidade, documentação e execução geral dos embarques”.
Ela acrescenta que isso não significa necessariamente que a relação entre o produtor e o torrador seja menos direta. “Eles estão apenas terceirizando alguns dos detalhes necessários para enviar e desembarcar o produto”, diz.
Etiópia
A Etiópia tem dois métodos distintos de comercialização de café: o Ethiopian Commodity Exchange (ECX) e o sistema de integração vertical.
A ECX foi criada em 2008 para facilitar o comércio de várias commodities, incluindo café. Embora tenha apoiadores e detratores, o sistema é funcional e popular para o comércio de cafés tradicionais.
A plataforma reúne o governo, os atores do mercado e os membros da ECX em um só lugar, onde eles podem fazer negócios com o apoio de um preço mínimo e transparência, além do benefício de pagamentos eletrônicos instantâneos.
Para os agricultores, há menos risco de inadimplência dos contratos, enquanto para os compradores há a garantia de fornecimento consistente. A ECX ainda fornece armazenamento e transporte para o café, aliviando significativamente os custos aos produtores.
A integração vertical, por sua vez, é a abordagem do país para o comércio direto. Foi legitimado pela ECX em 2017, após pressão dos exportadores de cafés especiais. Como eles podem manusear seu próprio produto e supervisionar o controle de qualidade e a classificação, os compradores que usam o modelo geralmente têm menos preocupações, enquanto os agricultores têm o poder de realizar acordos de preços antecipadamente.
Há um problema, no entanto: a integração vertical não se beneficia do sistema de pagamento imediato habilitado pelo ECX, o que significa que os agricultores ainda podem acabar esperando um pouco para receber os valores referentes às negociações.
Burundi
Por muitos anos, as exportações de café do Burundi estiveram sob o controle total do governo. Foi somente em 1991 que o sistema passou para os leilões, onde o governo continuou a fixar o preço mínimo.
No entanto, em 2008 o comércio direto tornou-se possível e produtores e exportadores finalmente ganharam mais controle sobre o processo. Hoje, os compradores ainda podem optar por comprar por meio de leilões facilitados pelo governo ou negociar diretamente.
Alguns obstáculos ainda existem para o comércio direto de cafés especiais. Por exemplo, os produtores continuam lutando com a falta de infraestrutura, e os problemas de transporte significam que nem sempre é fácil para os compradores viajar para as fazendas.
Quênia
No Quênia existem dois sistemas distintos para o comércio de café: o sistema de leilão e a chamada “Segunda Janela”.
Embora o sistema de leilões seja algumas vezes criticado por seu impacto nos meios de subsistência dos agricultores, ele ainda responde por mais de 94% das vendas de café no país. Se bem administrado, esse sistema garante que o café seja vendido ao preço mais alto possível, mas nem sempre é assim.
O segundo método, chamado de “Segunda Janela”, é efetivamente o sistema de comércio direto do Quênia. Foi estabelecido em 2006, após anos de pressão de agricultores e cooperativas. O comércio direto entre agricultores e compradores internacionais tornou-se mais popular nos últimos 15 anos, mas esse método ainda é pouco explorado.
Agricultores e cooperativas frequentemente citam a falta de conhecimento e os altos custos iniciais como os principais problemas para escolherem o comércio direto.
Tanzânia
Na Tanzânia, existe um sistema de leilões estabelecido com vários centros de leilões em cidades como Mbeya, Mbinga e Moshi.
Semelhante ao Quênia, o sistema de leilão representa a maior parte das vendas de café no país, enquanto o comércio direto é menos estabelecido.
Uganda
Em Uganda, o comércio é liberalizado. Isso significa que qualquer pessoa pode comprar e vender café em qualquer forma ou quantidade. Produtores individuais, cooperativas ou produtores agrícolas e de propriedades são livres para vender seus produtos a qualquer pessoa a preços negociados.
No que diz respeito às exportações, qualquer pessoa com licença de exportação pode exportar café, torrado ou verde. Os compradores podem comprar café como cereja, cereja seca, pergaminho ou café verde moído. O café é vendido por meio de “tratados privados” sem restrições ao volume negociado.
Ruanda
Como na Tanzânia, o comércio direto também é possível em Ruanda. Isso geralmente abrange cafés de alta qualidade, deixando os grãos com notas mais baixas reservados para o mercado local. As cooperativas têm uma presença estabelecida em Ruanda e têm relações com vários compradores diretos.
Há críticas de que, em alguns casos, muitos atores estão envolvidos no comércio, processamento e transporte do café ruandês, e isso pode tornar insustentável o preço pago aos agricultores. Em muitos casos, a força de trabalho mais jovem do país pode ser desestimulada por isso.
No entanto, há exemplos de produtores de café ruandeses inovando no mercado. Por exemplo, algumas partes interessadas começaram a negociar café na plataforma Tmall do Alibaba, que abre os produtores para a enorme rede de compradores da marca chinesa de comércio eletrônico.
Por que o comércio direto de cafés especiais tem menor peso no continente africano?
William Peters é um comerciante de café baseado na Tanzânia. Segundo ele, as principais razões pelas quais o comércio direto está menos estabelecido na África Oriental são a falta de investimento e a dependência excessiva do café para pagar as dívidas existentes.
“Você descobrirá que a maioria dos agricultores tem adiantamentos de empréstimos e dívidas pendentes das cooperativas que precisam ser pagas”, diz ele. “Eles, portanto, estão ‘presos’ à cooperativa e precisam esperar o pagamento de seu café para pagar esses empréstimos”.
Além disso, a logística pode ser incrivelmente cara, e William diz que as sociedades cooperativas de comercialização agrícola (AMCOS) simplesmente não podem financiá-la em nome dos agricultores. Somente depois que os importadores pagarem pelo café, a safra poderá ser movimentada.
Na Tanzânia, os agricultores também costumam ser pagos no prazo de sete dias após a venda do café. Ao contrário do comércio direto, onde eles podem esperar um tempo considerável antes de serem pagos, o sistema de leilão garante um pagamento mais rápido. No entanto, os preços podem ser mais baixos.
Robert Nsibirwa é especialista em café em Uganda e CEO da Africa Coffee Academy. Ele explica que as grandes torrefadoras tendem a agregar suas compras para garantir uma oferta constante, e que é apenas uma simples questão de escala.
“Se a Nestlé precisar de 30 milhões de quilos de café, será muito difícil trabalhar com 2,8 milhões de pequenos agricultores que fornecerão a quantidade necessária. É exatamente por esse motivo que os principais torrefadores comerciais optam por trabalhar com importadores em vez de lidar diretamente com os agricultores”, diz ele.
O importador também poderá lidar com quaisquer problemas de abastecimento. Por exemplo, se uma torrefadora precisa de um milhão de sacas e apenas 500.000 estão disponíveis, cabe ao importador suprir o deficit, e não a ela.
Se este fosse o caso de agricultores individuais ou pequenas cooperativas, o contrato poderia ter que ser cancelado, resultando em sérias consequências financeiras.
“É a economia de escala com os torrefadores e a certeza de fornecimento”, explica Robert. “É por isso que muitos importadores preferem ir para o exportador, que vai buscar um contêiner de talvez 1.000 agricultores.”
Outras barreiras ao comércio direto de cafés especiais
Para muitos atores da cadeia de suprimentos na África Oriental, o status quo e os modelos comerciais existentes são simplesmente muito lucrativos para considerar uma mudança para o comércio direto de cafés especiais. Mas existem outras razões específicas para haja menos interesse nesse modelo?
Bem, as leis locais podem exigir em alguns casos que, quando vendido diretamente, o café deve ser comercializado a um preço mais alto do que em leilão. Isso torna o comércio direto muito menos competitivo. William diz: “isso funciona contra o produtor porque os clientes vão preferir quem ofereça o mesmo café a um preço mais barato”.
O cultivo de cafés especiais também requer treinamento sobre a importância da qualidade e atributos sensoriais únicos; pode até exigir o apoio de um agrônomo.
Isso significa que apenas uma pequena percentagem de café pode atingir a qualidade pela qual os torrefadores de cafés especiais pagam prêmios. O acesso a esse conhecimento e treinamento na África Oriental é difícil sem o apoio de uma entidade maior, como um grande exportador ou importador.
Outro problema é a falta generalizada de certificações, seja de questões ambientais ou sociais. Compradores individuais de café verde que desejam praticar o comércio direto geralmente pedem por esses selos.
Embora muitas fazendas de café na região já estejam atendendo aos padrões mínimos para essas certificações, o custo para se tornar realmente certificado é outra barreira.
Como as coisas estão mudando?
Robert diz que quando cooperativas ou propriedades vendem diretamente, elas geralmente obtêm preços mais altos do que o café vendido localmente. Isso porque vendem para o mercado de cafés especiais, que pode pagar prêmios acima do preço normal de mercado.
“Através da responsabilidade social corporativa e das relações diretas, os agricultores que têm compradores diretos muitas vezes usufruem de subsídios e assistência. Estamos vendo mais organizações como a Fairtrade Labeling Organization (FLO) ajudando a fortalecer esses grupos de agricultores e até construindo projetos comunitários, como pontos de água.”
Mette-Marie concorda que o comércio direto é benéfico para os produtores da África Oriental, pois geralmente significa negócios repetidos para eles. No entanto, ela diz que, como a maioria dos cafés é de qualidade comercial, a maioria dos compradores vê mais benefícios no sistema de leilão.
“Os leilões proporcionam a descoberta de qualidade perfeita para os compradores, porque podemos ver as amostras do leilão e prová-las uma semana antes do leilão”, diz ela.
O café especial, contudo, adequa-se com maior facilidade ao comércio direto, e ela não vê motivo para que os dois sistemas não possam ser complementares.
“Os melhores produtores podem obter ótimos prêmios pelo café de qualidade que produzem diretamente para os compradores estrangeiros”, explica ela. “No geral, não vejo isso afetando o sistema de leilões de forma alguma.”
Em todo o mundo, os produtores de café costumam ser tomadores de preços e não negociadores. No entanto, o comércio direto mostrou que é possível encurtar a distância entre torrador e produtor e dar mais agilidade e controle ao processo.
Embora leilões, comerciantes e bolsas de commodities continuem sendo parte integrante da cadeia global de fornecimento de café, o comércio direto oferece algo diferente: a chance de se comunicar mais de perto com o comprador e, muitas vezes, receber um preço mais alto por sua safra.
Infelizmente, o sucesso deste sistema não é de forma alguma garantido e enfrenta muitos obstáculos na África Oriental. Resta ver se isso vai mudar nos próximos anos.
Gostou? Então leia nosso artigo sobre como enfrentar os desafios do comércio de café na África Oriental.
Tradução: Daniela Melfi.
PDG Brasil
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