30 de março de 2021

Degustando espécies de café selvagens esquecidas: um experimento

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Em todo o mundo, milhões de agricultores têm sua renda baseada na produção de café. Entre 2016 e 2020, o consumo global de café aumentou 158,77 milhões de sacos de 60 kg, atingindo um total de 167,59 milhões.

No entanto, apesar desta escala, as alterações climáticas representam uma ameaça significativa para os produtores de café em todo o mundo. Isto poderia, por sua vez, alterar a forma como as pessoas cultivam, torram, preparam e consomem café em todo o mundo. Até 2050, os cientistas estimam que até 60% da terra usada para o cultivo do café pode ter sido afetada pelas mudanças climáticas.

Para saber mais sobre as medidas que poderiam ser tomadas para mitigar o impacto das alterações climáticas em toda a cadeia de abastecimento de café, falei com Benoît Bertrand do CIRAD, um centro de investigação agrícola francês. Ele falou sobre como o setor de café pode começar a olhar para as espécies de café selvagens “esquecidas” daqui para a frente.

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Diversidade genética em plantações de café

Benoît diz que o CIRAD trabalha em prol do desenvolvimento sustentável do “Hemisfério Sul”, e se concentra em questões como a insegurança alimentar e as alterações climáticas. 

Segundo ele, o foco global do CIRAD é melhorar a diversidade e proteger tanto as espécies arábica como robusta dos aumentos da temperatura e das secas no futuro.

Uma das iniciativas do CIRAD foi unirem-se aos Jardins Botânicos da Realeza (Royal Botanic Gardens), Kew, no Reino Unido, para identificar espécies de café silvestres que podem ser capazes de se adaptar às mudanças climáticas.

Embora as espécies arábica e robusta representem mais de 99% de toda a produção de café, existem mais de 120 espécies que foram identificadas no gênero Coffea.

Ao explorar o potencial que estas espécies podem ter para produção em larga escala e consumo global, poderíamos melhorar a resiliência da cadeia de fornecimento de café a longo prazo e protegê-la contra as alterações climáticas.

Benoît conta que o CIRAD se concentrou em três espécies diferentes de Coffea que são todas relativamente desconhecidas. 

A primeira é a Coffea Stenophylla. Benoît diz: “Stenophylla [origina] da Costa do Marfim e Serra Leoa, onde os climas são mais quentes do que [onde] a Arábica [é cultivada].

Stenophylla foi comercializada há um século, mas a produção era limitada. A espécie foi [ignorada] pelos produtores e agrônomos por razões desconhecidas.” No entanto, fontes de antes do ano 1920 afirmam que sua qualidade é “excepcional”.

As plantas de Stenophylla apresentam cerejas pretas e podem crescer até seis metros, mas a espécie está sob ameaça de extinção. Aparece na lista vermelha de espécies ameaçadas, que é compilada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).

Stenophylla está desaparecendo”, explica Benoît. “Mas o IRD e o CIRAD têm algumas plantas em uma coleção na Réunion, [uma ilha localizada] no Oceano Índico, a leste de Madagascar.”

Segundo ele, o Centro de recursos biológicos de Coffea possui “mais de 35 espécies em conservação” na Réunion e em crioconservação em Montpellier, França. 

A segunda espécie escolhida pelo CIRAD é Coffea Brevipes. “Não sabemos [muito sobre] Brevipes”, diz ele. “Botânicos coletaram essa espécie, [mas] há pouca [pesquisa] sobre as possibilidades de cultivo e seu potencial uso em programas de melhoramento.

“Tem origem na África Ocidental, crescendo entre 500 e 1,450 m.a.s.l.(metros acima do nível do mar).”

A espécie final é Coffea Congensis, que foi encontrada originalmente na República Democrática do Congo. Ele diz que esta espécie pode crescer até sete metros de altura. “[Já sabemos que] podemos cruzar Congensis com Canephora (robusta) para obter sementes e novos híbridos”, explica Benoît.

A Congensis tem uma produtividade menor do que as plantas robusta, mas um perfil de sabor mais agradável, de acordo com uma revista brasileira publicada em 1979.

No entanto, é importante notar que, nessa época, os testes sensoriais foram consideravelmente menos rigorosos do que os realizados hoje, e os juízes não foram tão bem treinados. Por tanto, é necessário realizar outra análise sensorial de acordo com normas modernas mais rigorosas.

PROVANDO O DESCONHECIDO

Em 10 de dezembro de 2020, 15 especialistas da indústria cafeeira se reuniram no laboratório de análise sensorial do CIRAD em Montpellier, França, com mais quatro participantes virtuais da Suíça, Holanda e Bélgica. 

Os provadores (de empresas como Jacobs Douwe Egberts, Nespresso, Starbucks, Supremo, L’Arbre à Café, La Claque e Belco) concentraram-se no perfil sensorial das três espécies de café selvagem, Stenophylla, Brevipes e Congensis. Foi a primeira prova feita destas espécies juntas no mundo.

“Essas espécies representam três ecótipos distintos e suas [capacidades de adaptação] a diferentes climas e solos”, diz Benoît. “Representam três espécies com diferentes tipos de adaptação … e [isto mostra que o] consumo destes cafés é possível.”

Apesar da falta de pesquisa sobre os perfis sensoriais dessas três espécies cafeeiras Benoît, diz que existem evidências locais de consumo: “Os povos [locais] consomem os frutos de [Brevipes ou Congensis] porque [são doces].”

No entanto, ele observa que o objetivo da prova do CIRAD era decidir se essas três espécies têm ou não algum tipo de potencial entre os consumidores globais.

Durante o teste, os cafés foram torrados e preparados no laboratório CIRAD em três perfis diferentes para testar uma gama completa de aromas e sabores. A prova era cega, aderindo a um protocolo rigoroso, e também usou iluminação vermelha para “neutralizar” as cores do café e evitar que afete o sabor.

RESULTADOS PROMISSORES PARA O FUTURO

A análise completa dos resultados sensoriais será publicada nos próximos meses, mas a prova tem sido descrita como um momento “histórico” com resultados “promissores” e “surpreendentes”.

Os Q graders e os torrefadores identificaram notas de flor-de-sabugueiro e lichia em uma das espécies, o que destacou algum potencial para o mercado de especialidades. Do mesmo modo, os importadores alegaram que as espécies tinham todas as qualidades necessárias para serem comercializadas a nível mundial.

Estas três espécies também poderiam ser cultivadas de forma independente – o que significa que não teriam necessariamente que ser combinadas com arábica ou robusta.

No entanto, é importante notar que a introdução de uma nova espécie no mercado global de café seria um grande empreendimento e envolveria provavelmente uma quantidade significativa de pesquisa para garantir que o café em questão proporcione  rendimentos elevados e boa qualidade.

Depois disso, os importadores e os torrefadores precisam estar dispostos a comprar, torrar e vender a espécie; além disso, os consumidores precisam estar abertos a experimentar a novidade.

Com base na análise completa da prova, Benoît diz que o CIRAD poderia também considerar o cruzamento Coffea Congensis ou Coffea Brevipes com robusta, para criar cultivares de maior rendimento com qualidade de copa melhorada. Assim, o resultado seria uma planta resistente que vai atender à demanda do consumidor global.

Até agora, porém, ele diz que a pesquisa é animadora. “No ano passado, Aaron Davis publicou um artigo sobre as qualidades e possibilidades de cultivar [Stenophylla]”, diz.

Se a qualidade da Stenophylla se revelar positiva, esta espécie pode ser cultivada diretamente (em ambientes adequados), pois tem um rendimento naturalmente elevado.

Em contrapartida, a Coffea Congensis tem a habilidade de suportar níveis elevados de chuva. “A Congensis vem do Congo e cresce de forma natural perto dos rios … As raízes da planta geralmente crescem em água”, explica Benoît. “Isto poderia ser interessante [e útil] em condições onde há [chuva intensa].”

Como se estima que os pequenos agricultores sejam responsáveis por cerca de 70 e 80% da produção global de café, esta informação poderá ser apreciada por muitos. As alterações climáticas já estão obrigando os agricultores a plantarem em terrenos cada vez mais altos, à procura de temperaturas mais frias para a produção de arábica. Além disso, a infraestrutura limitada a que muitos produtores têm acesso significa que há pouca oportunidade ou capacidade de relocar as suas plantas de café.

“Nós [devemos] construir uma nova cadeia de valor, coletivamente”, diz Benoît. “Queremos [diversificar o café] para lhe dar mais valor. Para o setor de café especial, isso significa [um foco na]… qualidade mas para os agricultores, significa se adaptar às alterações climáticas.”

Em todo o setor cafeeiro, sabemos que não podemos mais ignorar o impacto das mudanças climáticas. Para avançar, temos de continuar a abordar e a explorar as formas como podemos garantir a estabilidade e a segurança do setor cafeeiro do futuro.

Dentro de alguns anos, isto pode muito bem significar aceitar que novos híbridos e até novas espécies possam entrar no mercado. Uma nova espécie de café, até então “esquecida”, na sua cafeteria local ou no seu torrefador de café especial pode fazer parte do futuro do consumo de café.

Traduzido por Daniela Andrade

Crédito das imagens: CIRAD, E. Couturon, C. Cornu

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